sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Memórias de uma velha gagá

Fantástico mundo moderno

Cláudia Rodrigues, em homenagem ao meu amigo Lau Baptista.

O verdureiro não falhava: terças e sextas passava com seu carrinho. Ao voltar, com dinheiro no bolso e carrinho vazio, acenava com um sorriso para o bando de crianças que brincava na calçada. O leite também chegava na porta, às 7h e diariamente. O pão ídem.

Cereais, farinhas e demais mantimentos; incluindo chinelos, alpargatas, pipas, coadores e brinquedos podiam ser encontrados nos armazéns e mercearias. Nunca se enfrentava filas, pagava-se ao final do mês e produtos diferentes podiam ser encomendados ao próprio dono, que realmente tinha prazer em servir, mas não propagandeava isso por meio de telefonemas inoportunos, o que tornava as compras bastante agradáveis e os eventuais problemas facilmente resolvidos.

As roupas eram sob medida, claro. Na modernidade ninguém seria tolo a ponto de submeter-se aos mandos e desmandos da moda. As senhoras não eram obrigadas a usar calças de cós baixo. A costureira possuía revistas nacionais e importadas, era possível escolher um modelo ou cruzar idéias, criar ali mesmo. Havia uma moda indicada, mas bastante flexível, para cada tipo de corpo e até dicas de óculos para esse ou aquele formato de rosto. As pessoas não andavam todas com óculos “everybody surfing now. Encontravam-se óculos dos tipos quadrado-pequeno ou quadrado-grande, retangulares ou redondos, de gatinho, de todos os formatos possíveis. As tendências e os conceitos eram apenas tendências e conceitos, não aprisionavam o sujeito, não o moldavam pelo plexo, aliás ninguém usava a palavra tendência, os diversos lados eram uma não tendência. As pessoas mais descoladas eram livres para inventar seus modelitos e nas lojas de tecidos encontravam-se estamparias grandes e pequenas, xadrez de várias cores, tecidos lisos e até o agradável algodão. Ninguém era obrigado a usar apenas tecido sintético em um tom único. Até havia, mas não se chegava ao absurdo de fabricar lençóis sintéticos ou roupas íntimas em tecidos intranspiráveis.

No fantástico mundo moderno as revistas e jornais traziam notícias, fatos interessantes que aconteciam no Brasil e no mundo. A imprensa não falava só de celebridades e políticos. Ser repórter no mundo moderno era sair com um bloquinho na mão pelas ruas da cidade. Ser jornalista era ter liga, sorte, curiosidade e competência suficientes para voltar à redação ao final da tarde com uma história quente e interessante para contar. Desse jeito até buraco de rua virava notícia. Os textos narravam os acontecimentos, o leitor sentia quando lia. O leitor se emocionava, ele podia crer ou duvidar, irritar-se, simpatizar, antipatizar, indignar-se, criticar e elogiar. Ele não era uma presa prestes a abandonar a jaula da ignorância midiática. Havia qualquer coisa de pedagógico no jornalismo, um sentimento filantrópico, uma pulsão para difundir a informação e entregar as polêmicas ao público. A própria propaganda de produtos era uma informação a mais, mas matéria era coisa séria que não propagandeava empresas, pessoas ou coisas.

A engenharia e a arquitetura da vida moderna estavam a serviço das pessoas, jamais dos vendedores de produtos e equipamentos. As casas eram projetadas para aconchegar ou refrescar as pessoas e não para tornar o ambiente mais clean ou aproveitar melhor o espaço apertado ampliando-o com um truque de espelhos, sancas e outras breguices. Espelho era espelho, servia para a pessoa se enxergar não para dar a impressão de que o ambiente era maior do que de fato. E duravam, as casas duravam anos sem precisar de reformas, a tinta custava a descascar, infiltração levava 30 anos para acontecer. O material das casas, como das roupas, não era para projetar um endividamento aos cidadãos. Quando se adquiria algo era por um bom tempo, assim sobrava uns tostões que podiam ser guardados no banco, que gentilmente cedia folhas de cheque, serviços pessoais, cobrava juros baixos e oferecia rendimentos para quem ousava tirar a sobrinha do salário das meias. Os bancos ofereciam vantagens para as pessoas trocarem o colchão pelos cofres! Nos tempos modernos, coisa de 50 anos, um pouco mais, era possível economizar e poupar porque o salário já não vinha lesado pelos estranhos acordos entre o patrão e as empresas amigas. Garrafas retornáveis, sujeiras limpáveis e objetos descartáveis usados com parcimônia. E olha que naquela época nem se pensava ecologicamente, nem havia marketing de sustentabilidade.

Carros também duravam, louças não descascavam, mas o melhor mesmo do mundo moderno era a medicina. Naquela época a medicina era uma ciência humana, voltada para o ser humano. Já havia antibióticos, mas infecções eram tratadas com dedicação e esmero. Mães necessitadas ou abastadas, com filhos doentes, eram socorridas em casa. Não precisavam sair chorando pelas ruas com uma criança febril. Não ficavam jogadas em bancos frios de hospitais públicos ou confortáveis poltronas de consultórios gelados à espera da disponibilidade do Deus Doutor, ocupadíssimo com ligações, congressos e moços da maleta preta.

Os doutores eram pessoas que visitavam as casas das pessoas e não tinham medo e nem nojo das gentes. Eles precisavam saber em que ambiente estava o doente, eles observavam se havia animais na casa, podiam recomendar fervura de água, consumo de frutas, não era raro que indicassem a família para alguma liga assistencial, era comum aceitar um cafezinho, acalmar, conversar, ensinar. Os doutores não eram uma bula ambulante e apressada com uma solução mágica a ser descarregada. Eles tinham medo da morte, confiavam na vida, duvidavam de si mesmos e dos medicamentos. Observavam efeitos colaterais, partiam do princípio de que poderiam errar e, de tanto cuidado, quase não erravam. Depois foram endeusados, pararam de olhar as pessoas nos olhos, nunca mais visitaram as casas, esqueciam agulhas e clipes dentro de seus pacientes, passaram a usar medicamentos cada vez mais potentes, começaram a achar as enfermidades mais interessantes do que a saúde.

E assim foi-se o mundo moderno. Sumiu.

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